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O Supremo, a farsa da técnica e o projeto da precarização
Num texto que escrevi há umas duas semanas, defendi que reconhecer o Supremo como ator político é só o começo. O que importa mesmo é perguntar: que política tem sido praticada? A decisão mais recente de Gilmar Mendes, ao suspender todos os processos sobre pejotização no país, ajuda a responder. E não pela exceção, mas pela coerência com o conjunto da obra.
A suspensão tem cara de técnica, fala em uniformização, em respeito a precedentes, em insegurança jurídica. Mas o conteúdo é outro. Na prática, é uma medida que impede que milhares de trabalhadores vejam reconhecido aquilo que é evidente: que prestavam serviço como empregados, ainda que forçados a abrir um CNPJ pra isso. Que tinham jornada, subordinação, salário, vínculo. E que, ao final, saíram com as mãos abanando, sem direitos, sem proteção, sem nem poder reclamar na Justiça.
Não é um gesto isolado. Gilmar foi voto a favor da terceirização irrestrita, inclusive pra atividade-fim. Defendeu o negociado sobre o legislado, mesmo quando isso significava rasgar direitos básicos. Validou o trabalho intermitente, aquela invenção que transforma o tempo do trabalhador numa peça solta, que só vale quando serve ao patrão. Enfraqueceu o direito de greve no setor público. Em todos esses casos, o argumento foi a técnica. Mas o efeito foi sempre o mesmo: o esvaziamento do direito do trabalho.
A decisão sobre a pejotização segue o mesmo roteiro. Gilmar não está corrigindo um excesso, está afirmando um modelo. Um modelo em que o trabalhador é responsabilizado por sua própria vulnerabilidade. Em que a empresa pode fraudar o vínculo e, se questionada, ainda tem o Supremo pra suspender o processo.
A reação não demorou. A Anamatra, a Abrat, a OAB-SP e até o próprio TST criticaram a medida. O TST lembrou que a suspensão generalizada impede a análise de casos concretos e desarma a Justiça do Trabalho no enfrentamento das fraudes. E não é de hoje que parte do STF age como se a Justiça do Trabalho fosse um poder dissonante, incômodo, a ser enquadrado. A decisão de Gilmar entra nessa chave: não é só um julgamento, é também uma tentativa de impor silêncio.
Mas nem todo mundo enxerga isso como só derrota. O juiz aposentado Jorge Luiz Souto Maior escreveu um artigo potente, onde diz que o gesto de Gilmar, mesmo sendo ruim, pode funcionar como alerta e oportunidade. Oportunidade de expor com mais nitidez o projeto em curso. De mostrar que há uma escolha deliberada, institucional, por um tipo de sociedade onde os direitos do trabalho são vistos como entraves. Uma oportunidade, enfim, pra classe trabalhadora levantar a cabeça, denunciar, reagir, reconstituir sentido coletivo.
Porque é isso: o que está em jogo não é um detalhe contratual. É o lugar do trabalho na ordem social. E quando o Supremo, pela voz de um único ministro, decide travar o acesso à Justiça, está dizendo que esse lugar pode ser negociado. Que dignidade pode esperar. Que quem ganha menos também deve esperar menos.
A Constituição de 88, que ainda é o que temos de mais próximo de um pacto democrático, não nasceu pra isso. Nasceu pra garantir o básico: salário digno, jornada justa, proteção. Quando um tribunal se afasta disso, ele não apenas falha. Ele muda o rumo. E o povo, especialmente o povo que trabalha, sente antes que compreende.
O Supremo é político, ninguém duvida mais disso. Mas quando essa política serve pra blindar fraude e silenciar quem tenta resistir, ela deixa de ser técnica e se transforma em projeto. E esse projeto, vale dizer com todas as letras, não é o da justiça social. É o da desigualdade estabilizada, do conflito abafado, da precarização como regra.
Mas talvez, talvez o gesto de Gilmar ajude a virar essa chave. Não por intenção, mas por excesso. Porque tem hora que a injustiça, mesmo vestida de toga, fala alto demais. É também um sinal de que a classe trabalhadora precisa repensar a via jurídica como única forma de fazer luta. Talvez seja hora de reconstruir estratégias que articulem também mobilização social, organização de base e pressão política direta.