João Pereira Coutinho
Folha
Nunca perdoei ao grande Robert Benchley a célebre observação sobre os escombros do primeiro hotel Waldorf-Astoria, em Manhattan, demolido para dar lugar ao Empire State Building. “Se estas ruínas falassem, muito nos aborreceriam.”
Que horror, Bob! Primeiro, porque o Waldorf devia ser de arromba, olhando para a galeria de personagens que passaram pelo edifício na sua primeira encarnação. E, depois, porque Nova York nunca aborrece, embora o novo Waldorf, que conheço bem, aborreça um bocadinho.
NATUREZA ENFADONHA – O mesmo não posso dizer de cenários naturais, idílicos, intocados pela mão humana, que normalmente têm o condão de me enfadar de morte.
Aguento o campo durante um dia, talvez dois. Ao terceiro, olhando para a paisagem, faço minhas as palavras de Benchley e murmuro: “Se essas montanhas falassem, muito nos aborreceriam.”
Sou um homem de cidades. Não as idealizo. Conheço a solidão, a angústia, os mil vexames da vida urbana. Mas também conheço aquilo que só a cidade permite: o anonimato, a individualidade, o encanto do fortuito. E a possibilidade de nos reinventarmos uma vez, duas, dez, sem o olhar intrusivo da pequena comunidade.
ANSIOSO E OBSESSIVO – Não tenciono convencer ninguém; e admito até que a falha seja minha – ansioso e obsessivo por excelência, preciso de um cenário que esteja em sintonia com os meus humores.
Os amigos sabem disso. Aliás, conhecem-me tão bem que quando estreou em Portugal o filme “As Bestas”, de Rodrigo Sorogoyen, todos eles me convenceram a assistir.
Fui adiando, adiando —até que o filme aterrou cá em casa com a força luminosa de um estrondo. O cinema europeu está vivo. O cinema espanhol está vivíssimo.
ALDEIA EM EXTINÇÃO – Em “As Bestas”, estamos na Galícia, numa daquelas aldeias que se foram esvaziando de gente, de crianças, de jovens, de mulheres.
Só ficou uma dúzia de locais, a cultivar os seus ressentimentos no boteco imundo. Entre esses ressentimentos, está a presença de um casal francês, cansado da cidade e que escolheu aquela terra para viver, trabalhar o campo, vender os produtos orgânicos nas feiras da região.
Começa o assédio aos estrangeiros: conversas maldosas, piadas sem piada, grosseria e violência. Que fazem os franceses ali? Que insulto é aquele? Que soberba!
SOLIDÃO E POBREZA – Gradualmente, percebemos que a xenofobia é secundária. O ódio principal está no fato de Antoine (magistral Denis Ménochet) e Olga (idem Marina Foïs) se recusarem a vender as suas terras para que gigantescas turbinas eólicas sejam instaladas. E, sem a permissão do casal francês, nada feito: todos estão condenados a ficar na solidão e na pobreza.
Meus amigos têm razão: os nativos, no abuso e na bestialidade, personificam o pior das comunidades pequenas — a maledicência, o excesso de confiança, a imposição da força bruta.
Mas minha repulsa é empática: quando uma das bestas explica a Antoine por que motivo é tão importante que todos possam vender as terras para sair dali, seria injusto não reconhecer o que existe de desespero nessas palavras.
ÚLTIMA BARREIRA – “Quero uma vida como a tua!”, grita Xan (Luis Zahera), para quem a idealização campestre de Antoine é a barreira última para que essa vida aconteça.
O filme de Rodrigo Sorogoyen, que venceu todos os Goya principais (a mais importante premiação do cinema espanhol), é um objeto rugoso e selvagem sobre a relação dos homens com a natureza.
E, nessa relação, Xan e Antoine parecem habitar planetas distintos. O primeiro vê na terra, naquela terra, a configuração de um presídio, onde jazem todas as vidas que ele não teve nem terá. O segundo acredita que encontrou o paraíso, recusando abandoná-lo por um punhado de euros, mesmo que isso implique o naufrágio de toda vizinhança.
OBSTINAÇÃO DESTRUTIVA – Ambos se aproximam na mesma obstinação destrutiva, como se o compromisso fosse uma derrota imperdoável. Homens que são homens não vergam.
De fora desse vórtice, e vítimas dele, estão as raras mulheres da história. Olga, mulher de Antoine, peça central da racionalidade perdida; e a mãe de Xan, a quem Olga oferece, contra toda a probabilidade, um gesto de reconciliação e empatia.
Se você, leitor, está cansado do cinema infantil que enxameia nossas salas e procura um dos grandes filmes dos anos mais recentes, corra para ver “As Bestas”. Se não gostar, eu prometo passar uma semana inteira no campo.