Paulo Peres
Poemas & Canções
O cantor e compositor cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes (1946-2017), na letra de “Apenas um rapaz latino-americano”, tenta mostrar o significado, na década de 70, daquilo que era ser um jovem e saído do interior para viver na cidade, algo distante da mistura colorida, a princípio, identificada na trupe da Tropicália. A música “Apenas um rapaz latino-americano” foi gravada por Belchior no LP Alucinação, em 1976, pela Polygram.
APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO
Belchior
Eu sou apenas um rapaz latino americano,
Sem dinheiro no banco.
Sem parentes importantes e vindo do interior
Mas trago na cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino, tudo é maravilhoso
Tenho ouvido muitos discos, conversando com pessoas
Caminhado o meu caminho, papo o som dentro da noite
E não tenho um amigo sequer que ainda acredite nisso não
Tudo muda, e com toda a razão
Eu sou apenas um rapaz latino americano
Sem dinheiro no banco,
Sem parentes importantes e vindo do interior
Mas sei que tudo é proibido,
Aliás, eu queria dizer que tudo é permitido
Até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê
Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Som, palavras são navalhas e eu não posso cantar como convém,
Sem querer ferir ninguém
Mas não se preocupe, meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer, ao vivo é muito pior
Eu sou apenas um rapaz latino americano,
Sem dinheiro no banco
Por favor não saque a arma no saloon, eu sou apenas um cantor
Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar
Mate-me logo à tarde, às três,
Que à noite eu tenho compromisso
E não posso faltar por causa de você
Eu sou apenas um rapaz latino americano,
Sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes e vindo do interior
Mas sei, sei que nada é divino
Nada, nada é maravilhoso
Nada, nada é secreto
Nada, nada é misterioso não.
Em carta de 1974, Belchior já planejava o voo latino-americano.
Uma carta de Belchior com 26 linhas datilografadas, endereçada a Ricardo e Beth Bezerra e datada de novembro de 1974, possibilita grandes alumiamentos sobre o início da trajetória do bardo de Sobral. A carta foi divulgada em 2017 pelo blog do jornalista Jocelio Leal, do jornal O Povo.
Em 1974, Belchior tinha recém-lançado o seu primeiro LP, Mote e Glosa (sim, eu sei que o nome é Belchior, assim como eu sei também que o disco dos Beatles não é White Album, é The Beatles), que estava vendendo absurdamente… nada. A gravadora Chantecler já o tinha dispensado, mas Belchior, conforme expressava na carta, não estava nem aí para isso e mencionava um convite para gravar na RCA – Alucinação, o disco seguinte, sairia pela Polygram em 1976. Cheio de autoconfiança, o artista fazia planos de uma turnê latino-americana (Santiago, Montevidéu, Buenos Aires, Assunção) “para estudantes” (“Ainda sou estudante da vida que eu quero dar”) e se incomodava com o abuso das revistas (batidas policiais ou publicações de gossips?) nos aeroportos.
Curioso notar também que Belchior expressa, na carta, a estratégia com a qual nutria seu relacionamento com São Paulo, onde estava instalado havia pouco tempo. Ele escreveu de São Paulo para Fortaleza. “Aqui em São Paulo ainda está frio. Creio, porém, que rever as pessoas queridas e brincar de novo ao sol daí é o bastante para ter calor durante muito tempo”. Era o sentimento de um compositor que cantava sua música Passeio pela primeira vez para grandes plateias (“Vamos sair pela rua da Consolação/Dormir no parque em plena quarta-feira/E sonhar com o domingo em nosso coração”).
Belchior também apostava no LP de estreia de Fagner, pela Philips, e o chamava de Mago (uma corruptela de “magro”, muito frequente no tratamento nordestino; é como é chamado, por exemplo, o ex-governador paraibano Ricardo Coutinho). Fala de um show recente feito em São Paulo no Mackenzie para 2 mil espectadores, ao lado de Carlinhos Vergueiro (na casa de quem Belchior viveu por uns tempos) e Marcus Vinicius (arranjador, regente e diretor musical do seu disco de estreia, Mote e Glosa). Show no qual cantou Freedom, de Richie Havens. Também menciona os colegas Rodger Rogério e a cantora Tetty (que celebrou 77 anos neste dia 13 de junho).
NOTA DO REDATOR: Como eu não li na época no blog do Jocélio, só vim a tomar conhecimento agora dessa carta. O que me causou grande alegria, por isso dei até como inédita. Mas já circulava por aí há algum tempo. Mas o entusiasmo persiste!