João Gabriel de Lima
Estadão
O presidente se chamava Jair Messias Bolsonaro. O funcionário, Mário de Marco Rodrigues de Souza, conhecido na Receita como De Marco; O servidor – importante frisar – era público. O presidente queria incorporar ao seu patrimônio – privado – joias no valor de R$ 16,5 milhões que, pelo regulamento, pertenciam ao Estado. Eram, assim, públicas – mas a noção de bem público do presidente era mais abrangente, pessoal e imprecisa do que a do servidor.
“É importante fazer uma diferenciação entre Estado e governo”, diz Gabriela Lotta, professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas. “Os servidores públicos são de Estado, representam instituições que permanecem para além dos governos de plantão.”
INSTITUTO REPÚBLICA – Gabriela Lotta é vice-presidente do conselho do Instituto República, organização voltada para a melhoria do serviço público.
Dois dias antes da conclusão de seu mandato, o presidente mandou um sargento reaver as joias, retidas no Aeroporto de Guarulhos aos cuidados do servidor em questão. Elas haviam entrado no País como contrabando, na mochila de um assessor.
O sargento mostrou documentos na tela do celular, pediu que o servidor atendesse a ligações de seu superior – um tenente-coronel – e do superior dele – o secretário da Receita Federal. O servidor sabia o significado estrito da palavra “público” – e não atendeu os telefonemas.
CARTEIRADA FINAL – O sargento deu a carteirada final: disse que as joias pertenciam ao presidente, que sairia do governo dali a dois dias: “Não pode ter nada do antigo para o próximo, tem que tirar tudo e levar”. Não colou.
E assim o servidor Marco Antônio Lopes Santanna, que continua no cargo, impediu o malfeito do presidente Jair Messias Bolsonaro, hoje fora do posto.
“O servidor precisa de estabilidade para, em momentos de confronto, defender o Estado de algo que seja ilegal ou imoral”, diz Gabriela Lotta. Não que ele não possa ser demitido. “Há regulamentos, estabilidade não significa permissividade.” O ato de Santanna nada tem de heroico. Ele simplesmente cumpriu sua função de forma correta. Se não cumprisse, poderia enfrentar um processo administrativo.
JORNALISMO DE VERDADE – A série de reportagena sobre as joias é de autoria de Adriana Fernandes e André Borges, da sucursal de Brasília do Estadão.
O time comandado por Andreza Matais se tornou uma referência no jornalismo investigativo brasileiro.
Nosso país pode ter vários problemas, mas o episódio das joias mostra que por aqui existem pelo menos duas coisas boas: servidores dignos da palavra “público” – que honram como um sobrenome nobre – e uma imprensa que não se curva aos poderosos, mesmo que sejam presidentes da República.
NOTA DA REDAÇÃO DO SITE – Bem, Bolsonaro enfim começou a devolver o acervo que dizia lhe pertencer, por se tratarem de bens “personalíssimos”. Já entregou o estojo de peças em ouro, o fuzil e a pistola que recebeu de países árabes. Mas ainda faltam dezenas de bens valiosos, que estão sendo listados pela Receita, em conjunto com a Presidência. Teremos algumas surpresas pela frente. Quanto a Lula, aguarda julgamento no dias 25 de abril, no TRF-3, que decidirá sobre as 21 joias e peças valiosíssimas que ele tenta recuperar, depois de serem apreendidas por ordem do Tribunal de Contas da União.