Eliane Cantanhêde
Estadão
Bolsonaristas criticam o presidente Lula por relações complacentes ou até amigáveis com ditaduras absurdas, mas o então presidente Jair Bolsonaro e sua mulher, Michelle, são presenteados com joias em ouro e diamantes, em valores do outro mundo, por uma das ditaduras mais sanguinárias do planeta, a da Arábia Saudita. E nem se sabe o porquê dos presentes…
Com toda razão, petistas e adversários caem de pau em Bolsonaro e Michelle, por causa das mil e uma noites e joias das arábias, mas o presidente Lula se recusa a assinar um manifesto de 55 países contra a ditadura abjeta da Nicarágua e a favor da população nicaraguense. Também não se sabe o porquê…
DOIS PROBLEMAS – São coisas diferentes? Sim, com certeza, porque presentes pessoais de muitos milhões de reais são criminosos e o fato de terem sido dados ao presidente e à primeira-dama pela ditadura saudita é só um dado do redemoinho escandaloso. Mas nem por isso se deve tapar boca, olhos e ouvidos para a omissão do governo Lula diante do que ocorre na Nicarágua. Nesse caso, omissão é conivência.
A Nicarágua, maior país da América Central, fica entre o Oceano Pacífico e o Mar do Caribe, abriga quase 7 milhões de habitantes e saiu em 1979 de uma ditadura sangrenta para uma democracia humanista que evoluiu drasticamente para uma outra ditadura sangrenta. E o líder da revolução libertadora é o mesmo que agora massacra opositores: Daniel Ortega.
Relatórios da OEA e da ONU citam desde deportações, prisões arbitrárias, torturas e estupros até assassinatos. A última “pérola” do regime foi confiscar o direito à nacionalidade de adversários, sob forte rechaço dos países latino-americanos. Mas a reação do Brasil foi o silêncio, constrangedor e indesculpável, ainda mais para quem se arvora “líder regional”.
TRÊS EXPLICAÇÕES – Embaixadores arriscam três explicações extraoficiais. Uma: o documento principal não é do Conselho de Direitos Humanos da ONU, mas de um assistente. Outra: o histórico de não ingerência do Brasil em questões internas e que não lhe cabe decidir o que é ou não ditadura. Bem… E a terceira, curta e grossa: “Lula não quer contrariar a ala radical do PT”.
O fato é que, como a invasão do MST em fazendas produtivas na Bahia, ignorar a condenação do regime de Ortega é dar carne aos leões: à oposição e particularmente à extrema direita, que alardeava na campanha que Lula seria leniente com ditaduras, MST, até fechamento de templos (o que não aconteceu).
E deixa no ar: qual teria sido a reação do Brasil se os atos terroristas de 8/1 tivessem sido na Venezuela, na Nicarágua, em Cuba…? Silêncio, não ingerência?