Mathias Erdtmann
É possível fazer uma crítica construtiva ao BC sem ameaçar sua autonomia. E no núcleo dessa critica pode ser feita uma proposta, em um formato que pode agradar gregos e troianos. É muito simples, basta “copiar a matriz”, uma proposta que deveria, a princípio, ser bem aceita pelo mercado, e satisfazer os desígnios do governo — que o BC brasileiro tenha duas metas, de forma semelhante ao dos EUA.
Aqui, o BC tem uma missão: controle da inflação. E para isso ele tem um arsenal cuja arma preferida é a definição da taxa de juros (pedais do acelerador e freio da economia).
DUPLO MANDATO – Nos EUA funciona o chamado “duplo mandato” desde 1977, com duas missões: (1) controle da inflação e (2) manutenção do pleno emprego. Além da taxa de juros, outra ferramenta muito usada é o controle da base monetária (dinheiro em circulação) com os afrouxamentos (“quantitative easining”) e tensionamentos (“quantitative tightening”).
No Brasil, com a única missão, a maior eficiência da ferramenta dos juros ocorre quando o banco opera com base monetária muito pequena, com os enxugamentos, ou retiradas do dinheiro em circulação dos bancos (de forma remunerada mediante depósitos compromissados), que tanto são criticados pela Dra. Maria Lúcia Fattorelli.
Isso tudo é fácil de comprovar ao analisar a base monetária M2 como percentual do PIB, disponível na página de dados abertos do BC e do FED (base de dados do BC dos EUA). Nos EUA a base monetária (ou dinheiro em circulação – agregado M2) está hoje em 82% do PIB, enquanto no Brasil está – como sempre – em 50% (mais baixo que o mínimo da história norte-americana).
POBREZA ARTIFICIAL – Essa versão brasileira cria uma pobreza artificial e os bancos ficam “sem dinheiro” pra emprestar, aumentando o spread, que é a diferença entre o juros do governo e o juros para as pessoas.
Ora, neste duplo mandato, o BC não pode esfolar a “real economy” dos empregos das pessoas em troca de uma missão meramente bancária, e com isso ganha uma sensibilidade adicional — sem perder a autonomia, e sem requerer que o presidente da República ou o ministro da Fazenda façam o triste papel de pedir compaixão aos banqueiros.
Lá nos EUA as metas são definidas e aprovadas anualmente no congresso, sendo atualmente uma inflação a 2% (+-1 %) e desemprego em 4,4% (+- 1%) – esses números praticamente não mudam de um ano pra outro.
PLENO EMPREGO – Para trabalhar dentro das margens, se o desemprego crescer, o Banco Central americano tem que aceitar ir ao limite superior da inflação para aquecer a economia, por exemplo.
Esses 4,4% de desemprego caracterizam o pleno emprego, pois é esperado que sempre exista uma parcela (pequena) da população que esteja trocando de empregos, formando um colchão de mobilidade que ainda permite algum poder de barganha aos patrões e empregados.
Vejam que assim a autonomia e o poder do BC vêm junto com uma missão que inclui o bem-estar geral a partir do emprego, garantindo a dignidade e oportunidades ao povo americano.
OUTRO EXEMPLO – Na Nova Zelândia, foram até mais longe no sistema BC autônomo + meta de inflação, instituindo “triplo mandato”: (1) inflação baixa e positiva; (2) pleno emprego; (3) preços de aquisição de casas com baixa inflação.
A terceira meta buscaria evitar a inflação de ativos, que é uma das principais fontes de desigualdade, pois a parcela mais rica, possuidora de mais ativos, se beneficia com ela, enquanto os mais pobres são prejudicados pelo aumento dos aluguéis. Com essa política, o sistema financeiro do governo busca estabilidade da economia com emprego e chance de moradia digna para as pessoas.
Vejam que estes sistemas não ferem a autonomia dos BCs, muito pelo contrário: dão mais poder para algo que funciona (a certo grau, até melhor que outras esferas do governo), ao mesmo tempo que insere o banco nas questões de bem-estar social – sem fazer política diretamente, mas através do emprego.
NOTA DA REDAÇÃO DO SITE – Mathias Erdtmann é um dos intelectuais brasileiros que eu mais respeito e admiro. Seus artigos deveriam ser republicados por toda a grande imprensa para vitalizar nas redes sociais. Mas quem se interessa por uma discussão de tamanho nível? O presidente da República, é claro, deveria ter assessores com esse padrão de conhecimento, mas está cercado de áulicos pessimamente instruídos, que só sabem bater palmas para as asneiras que Sua Excelência espalha diariamente aos borbotões. É pena.