Jorge Maia | Professor e Advogado
A música de João Bosco e Aldir Blanc, O Rancho da Goiabada, é mais que uma música. É um compêndio de Sociologia, Política e Antropologia cultural. O mais breve resumo de um momento crucial da injustiça social. É preciso ser gênio para, em tão pouco espaço cultural, conseguir estabelecer uma narrativa orgânica de uma realidade em que as ciências sociais se entrelaçam para explicar uma realidade humana, sem se perderem no papel que cumpre a cada uma delas. Confira a crônica do professor Jorge Maia.
Os elementos materiais, os sonhos e o entorpecimento dos personagens, que fugindo do sofrimento, são apresentados com um realismo pontual, mas sem perder a beleza da poesia, que se propõe a emocionar, denunciar e nos fazer refletir sobre a crueldade estabelecida pela desigualdade.
Fosse eu professor de alguma disciplina relacionada com alguma daquelas ciências, eu incluiria na bibliografia do curso essa música. Cantaríamos e dissecaríamos a sua letra de modo cirúrgico, buscando o significado daquela realidade, da pretensão dos autores e a compreensão sobre cada um daqueles atores, cujas dores são minimizadas com umas biritas produtoras de sonhos de uma refeição mais rica. Um bife à cavalo e uma sobremesa. Tão pouco e tão distante, mas tão desejado, porém inacessível.
O palco é um bar. Não poderia ser outro, é lá que tantos iguais comparecem para gritar os seus lamentos e alardear seus sonhos, pesadelos e a esperança, que sem nenhuma estratégia, alimenta a vinda de um novo amor.
Cada personagem traz em si uma dor que percorre a distância entre a cabeça e o coração e afeta a todo o corpo, adoecendo a alma. Apegados aos seus poucos pertences: um rádio de pilha, o velho fogão jacaré, poucos sabem o que é isso, a marmita e a comida fria. O dia é domingo. Bem emblemático, é a folga da semana que permite esse encontro para que cada um diga a sua mentira, uma forma de suportar a existência.
É gente de todo o Brasil, das mais diversas culturas regionais, todos fugindo de algo que consideravam pior. Gente simples, humilde de verdade, retratada em uma letra musical, mas que poderia ser um quadro de Tarsila do Amaral ou de Portinari. Também há algo de cinematográfico, uma movimentação e um ruído de bar. Ali as conversas se perdem entre tantos relatos, opiniões, sonhos e muitos pesadelos. Assombrações que perseguem e marcam a existência de todos, enquanto as estações obedecem a sua rotina anual. VC081022.
O RANCHO DAS GOIABADAS
Os bóias-frias quando tomam umas birita
Espantando a tristeza
Sonham com bife-a-cavalo, batata-frita
E a sobremesa
É goiabada-cascão com muito queijo
Depois café, cigarro e um beijo
De uma mulata chamada Leonor ou Dagmar
Amar
O rádio-de-pilha, o fogão-jacaré, a marmita, o domingo
no bar
Onde tantos iguais se reúnem contando mentiras
Pra poder suportar
Ai, são pais-de-santo, paus-de-arara são passistas
São flagelados, são pingentes, balconistas
Palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados
Dançando dormindo de olhos abertos à sombra da alegoria
Dos faraós embalsamados