Deu na Folha
A decisão do Supremo Tribunal Federal que permite a responsabilização de veículos de comunicação por declarações de entrevistados não é clara e certamente vai agravar o já caótico cenário da jurisprudência brasileira no tema da liberdade de expressão.
Em agosto de 2023, por maioria de votos, a corte condenou o jornal Diário de Pernambuco a pagar indenização por conta de acusações feitas por Wandenkolk Wanderley em entrevista. No julgamento, que se iniciou virtualmente, três ministros defenderam a condenação do veículo. As premissas dos votos eram bastante diferentes, o que, naturalmente, gerou três propostas de tese de repercussão geral muito distintas.
SEM FUNDAMENTOS – Na retomada do julgamento em novembro de 2023, o STF acabou fazendo uma colcha de retalhos: basicamente juntou as teses dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. A sessão pouco revelou sobre as razões que fundamentaram essa tese.
Depois das duras críticas a esse julgamento, esperava-se que a redação final do acórdão, publicado no último dia 8 de março, redundasse em uma tese coerente e fundamentada. Contudo, as 99 páginas do documento apenas revelam que a causa que deu origem a essa discussão não estava madura para julgamento e muito menos para a fixação de uma tese tão importante.
A tese do ministro Moraes não faz distinção entre a publicação, pela imprensa, de conteúdo próprio e a publicação da voz de terceiros. Ora, mas era exatamente essa distinção que justificou o reconhecimento da repercussão geral do caso.
DESINCENTIVO – Ao ignorá-la, a tese impõe à imprensa, em relação ao conteúdo expresso por terceiro, os mesmos deveres de cuidado que possui na apuração de conteúdo próprio. Um desincentivo inédito, no ordenamento jurídico brasileiro, à publicação de entrevistas.
Entrevistas trazem para a arena pública o pensamento e a visão do entrevistado. Seu conteúdo, por si só, é a notícia. Se mentiras são ditas, é importante que se saiba que o entrevistado mente.
Exigir do jornalismo que previamente apure a veracidade de acusações para só então publicá-las é limitar a circulação de informações. Não é demais lembrar que a Constituição Federal tem um mecanismo previsto para restabelecer a verdade: o direito de resposta.
TESE DE BARROSO – A tese do ministro Barroso, apensada ao final daquela proposta pelo ministro Moraes, captura essa distinção.
Barroso afirma que a responsabilização da imprensa pelo conteúdo ilícito em entrevistas de terceiros apenas se justificará se “(1) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (2) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.
Mas o que seriam os “indícios concretos da falsidade da imputação”? E, ainda, qual é o “dever de cuidado” que cabe à imprensa nesses casos?
SEM FUNDAMENTAÇÃO – Constatados os indícios de falsidade, a imprensa deve deixar de publicar a entrevista? Deverá privar o público de saber o que pensam certas personalidades públicas em função da falsidade das crenças dessas personalidades? Caso a publicação seja lícita, o que deverá acompanhá-la para que a imprensa não seja civilmente responsabilizada? O que será suficiente? E se a entrevista for ao vivo?
A tese acabou sem uma fundamentação própria, o que a torna ininteligível e abre margem para que seja tão livremente interpretada, que o único resultado possível será uma caótica aplicação pelas instâncias inferiores.
Embargos de declaração devem dar ao Supremo uma nova oportunidade para reduzir essa confusão. Até lá, expressamente suspender a aplicação da tese por ora, atribuindo-se efeito suspensivo aos embargos, pode ser não só bom mas altamente recomendável.
UM MINUTO POR FAVOR: Um artigo interessante, escrito por Charlene Nagae, Clarissa Gross, Mônica Galvão e Taís Gasparian, fundadoras do Instituto Tornavoz. Mostra que o Supremo confundiu a banda de Paraibuna com a bunda da paraibana.