Joel Pinheiro da Fonseca
Folha
À distância, no oceano, banhistas veem um navio cargueiro. Uma menina comenta que o navio parece estar vindo em direção à praia, mas o pai prontamente rejeita essa opinião; deve ser só impressão. Algum tempo depois, o navio já está bem mais próximo, mas o pai ainda segue dando garantias à família: alguém deve estar tomando conta disso, ninguém iria permitir esse desastre. Até que o navio, gigantesco, está chegando à praia, vindo a toda a velocidade, e só resta à família correr em pânico numa fuga desesperada.
Essa cena, parte do segmento de abertura do filme “O Mundo Depois de Nós” da Netflix — um filme-catástrofe com subtexto político —, retrata bem o momento em que vivemos.
UM ANO-CATÁSTROFE – O navio que se aproxima é 2024. O mundo assiste incrédulo às preparações para as eleições americanas. Poucos se permitem reconhecer o que é cada vez mais provável: Trump vai vencer e sua volta ao poder terá um impacto profundo tanto na democracia americana quanto na ordem mundial.
Coincidem dois momentos: a deterioração da hegemonia americana no mundo e uma revolução tecnológica — que inclui internet, redes sociais, smartphones e inteligência artificial — que dá mais poder aos indivíduos e, portanto, dificulta a vida de qualquer instituição cujo trabalho inclui controlá-los. As energias sociais que estavam adormecidas e foram liberadas nos ameaçam com o caos.
Contra todas as evidências, há quem viva com a esperança de que, de algum jeito, os bons e velhos tempos voltem a reinar; alguém, de algum jeito, fará tudo voltar ao normal. Se toda essa loucura, essa divisão, esse populismo forem embora, tudo voltará ao normal, seremos de novo como nos anos 90.
NA ERA DA CERTEZA – Os anos 90 — cuja nostalgia está em voga, inclusive no filme citado — foram uma década de consenso moral, de certeza no progresso, de crença na bondade do homem e na democracia.
Em que um sistema bem administrado — no governo, na mídia, nas universidades, na ONU etc. — por especialistas credenciados garantia o bom funcionamento da sociedade. Todos viam os mesmos programas de TV, estudavam o mesmo currículo e votavam nos mesmos partidos.
O escapismo só nos atrapalha. Primeiro porque a tecnologia não retrocederá. O controle top-down da opinião e da informação não é mais possível. Segundo, porque a casta dos especialistas não era lá tão boa assim. E, terceiro, excluía a maioria das pessoas do poder, apesar do discurso de democracia e liberdade, gerando o ressentimento que hoje explodiu.
SUFOCAMENTO – Para mim, que cresci naqueles anos, o sentimento era de sufocamento: o único caminho na vida era se formar e trabalhar duro para ocupar um lugarzinho especializado na tecnocracia, sobrando apenas a discussão de detalhes técnicos.
Do ponto de vista histórico, esse velho “normal” é anormal. Um curto período entre o fim da Segunda Guerra e o começo do século 21, quando técnicos e “instituições” pareciam dar conta de todo problema social.
O que voltou a existir é a política, ou seja, o conflito irremediável entre diferentes grupos humanos e diferentes visões de mundo, que jamais serão resolvidos pela pura discussão técnica. A própria noção de verdade entrou em xeque.
A ERA DA LOUCURA – Mais importante do que acabar com as fake news — o que é impossível — é entender porque tanta gente está tão ávida por acreditar nelas e aprender a conquistar a confiança do público.
A “loucura” está aí, não irá embora e não dá para proibi-la. É preciso mergulhar de vez nas novas águas e aprender a jogar o jogo do debate público, alargando nossa concepção do que é aceitável.
É isso que desejo a todos os que trabalham por um mundo melhor em 2024.