“PORQUE SOU NEGRO, E NEGRO NÃO PODE SER JUIZ. NÃO PODE SER MAGISTRADO…”

Jorge Béja

O título deste artigo está posto entre aspas porque me foi dito por um Juiz de Direito da 1ª instância do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, décadas e décadas atrás. A frase, até hoje, tanto tempo depois, ficou gravada na minha memória. A frase, o fato, o local, as circunstâncias e tudo mais trago na minha lembrança, sempre tristemente recordada. Nos últimos tempos até que tive um alívio. Não por tê-la esquecido e sim pela compreensão da realidade.

Mas desde anteontem, o que aconteceu com o atleta Vinicius Júnior, jogador de futebol do Real Madrid, todo o passado voltou à tona. Se recordar é viver, recordar o que foi triste é sofrer.

JÁ TEM SENTENÇA? – Foi assim. Dos muitos processos indenizatórios rumorosos que atuei como advogado, sempre em defesa das vítimas ou de seus familiares (Chacina da Candelária, Chacina de Vigário Geral, Queda do Elevado Paulo de Frontin. Bateau Mouche, Queda do Palace II de Sérgio Naya….), os jornalistas setoristas do Tribunal (como Marilea Miranda, do Jornal do Brasil, Elba Boechat, do O Globo, Zé Grande e Albeniza Garcia, de O Dia) todos os dias eles me perguntavam: “Béja, já tem sentença?”. Todos estavam sempre interessados na primeira sentença de cada caso.

Um dos processos, já devidamente instruído e à espera da sentença que estava demorando a ser dada, me fez esperar o juiz chegar à vara cível para dizer ao magistrado que toda a imprensa estava me cobrando a decisão.

PERGUNTEI AO JUIZ – Eu ficava sentado no banco do corredor, perto da porta do cartório por onde o juiz entrava quando chegava por volta das 13 horas. Naquele dia, quando o juiz chegou, me levantei e perguntei sobre a sentença. Educado, simples e com vasta cultura, ele me respondeu: “Que processo?”.

Quando identifiquei qual, me garantiu: “Trago amanhã, com certeza”.

Palavra dada, palavra cumprida. No dia seguinte o juiz trouxe a sentença. E ao chegar e ainda no corredor do fórum, ao me ver sentado esperando, me disse “vem comigo para o gabinete e leia a sentença”. Entramos juntos. Ele ficou na sua mesa, larga e imponente. E eu na mesa do lado direito do juiz, mesa de menor tamanho e de baixa altura. E comecei a ler a longa sentença.

APARECEU UMA MULHER – Só nós dois. Silêncio absoluto. Mas por três vezes uma mulher (certamente advogada), cuidadosamente e com leveza, abria a porta, e pela fresta nos olhava e se retirava. A mulher não dizia nada. Depois da terceira vez, interrompi a leitura da sentença e o silêncio e perguntei ao juiz: “Doutor, é a terceira vez que esta mesma mulher abre a porta, nos vê e vai embora. Que será?”.

E o juiz respondeu: “Ela está querendo falar ou despachar com o juiz”.

“Mas o senhor é o juiz e está presente no gabinete”, disse eu. Foi quando ouvi do juiz a frase que me calou, que me fez parar de ler a sentença, que me comoveu: Me disse o juiz: “Porque sou negro, e negro não pode ser juiz, não pode ser magistrado”.

ENFIM, A EXPLICAÇÃO – E o silêncio no gabinete continuou. Como fiquei imóvel, calado e comovido, em dado momento o juiz olhou para mim e perguntou: “Dr. Béja, parou de ler a sentença? Por que está calado?”.

“Estou comovido, abalado, sem força, envergonhado pelo que vi e ouvi”, respondi. E o fidalgo juiz me consolou. Me disse que não me sentisse abalado, porque abalado ele não estava.

“Desde criança o racismo me persegue. É moléstia incurável. Sempre existiu, existe e existirá. A solução está na compreensão. Só a compreensão cura a humilhação”.

AQUELE HOMEM PRETO? – Acabei de ler a sentença. O magistrado permitiu que a levasse para tirar xerox e distribuir para os repórteres setoristas.

Quando passei no cartório, a mulher estava sentada. Tomei coragem e perguntei se ela estava esperando o juiz chegar. Ele respondeu que sim. Quando eu informei que o juiz já tinha chegado há mais de uma hora atrás e já estava no gabinete, ela me perguntou friamente, demonstrando surpresa: “É aquele homem preto de terno branco?”.

Respondi: “Sim, é ele mesmo”. Nada mais disse. Fui tirar xerox. E quando voltei agradeci ao juiz. Ele se levantou, me deu um abraço e parabéns pela vitória dos meus clientes.

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Um dia acordei para ‘jornalizar’ a vida com os meus leitores. Nesta época trabalhava no extinto jornal Tribuna do Ceará, de propriedade do saudoso empresário José Afonso Sancho. Daí me veio a ideia de criar o meu próprio site. O ponta pé inicial se deu com a criação do Caririnews, daí resolvi abolir este nome e torna-lo mais regional, foi então que surgiu O site “Caririeisso” e, desde lá, já se vão duas décadas. Bom saber que mesmo trabalhando para jornais famosos na época, não largava de lado o meu próprio meio de comunicação. Porém, em setembro de 2017 resolvi me dedicar apenas ao site “Caririeisso”, deixando de lado o jornal Diário do Nordeste, onde há sete anos escrevia uma coluna social…

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